quinta-feira, 5 de julho de 2007

Incêndios Florestais e Investigação Criminal

As causas dos incêndios florestais são variadas. Não se podem atribuir a um único factor. Sabe-se que o comportamento preventido pode evitar boa parte deles. Sabe-se também que muitos têm origem criminosa. Mas, as condições climatéricas favoráveis são factor primordial. A investigação criminal pode dar um contribunto muito importante, não apenas para dissuadir criminosos e prevenir negligentes, mas também para dar aos técnicos uma ideia mais precisa sobre a origem dos fogos florestais, ajudando-os nas acções de prevenção. Nesse sentido, é interessante a leitura do seguinte artigo, publicado no Boletim da Ordem dos Advogados, em 2005, e assinado pela Dra. Ana Maia e pelo Dr. Paulo Marques.






Incêndios Florestais e Investigação Criminal

Intimamente conexos com o pulsar social, os incêndios florestais, quer pelo seu número, quer sobretudo pela sua dimensão e consequências, fazem parte da agenda política e mediática, motivando as mais díspares opiniões sobre as suas causas, bem como sobre a melhor forma de, no futuro, evitar a sua repetição. Em virtude do trabalho desenvolvido ao longo de muitos anos, existe da parte da Polícia Judiciária um verdadeiro awareness para algumas dificuldades inerentes a esta realidade incontornável, sendo que a presente comunicação versará essencialmente sobre tais aspectos.

A actuação da Polícia Judiciária encontra cobertura no preceituado na alínea c) do n.º 2 do art.º 5 do Dec. Lei 275-A/2000, de 09.11 (vulgo, Lei Orgânica da Polícia Judiciária), o qual estipula que é da competência reservada da Polícia Judiciária o crime de incêndio desde que, em qualquer caso, o facto seja imputável a título de dolo. Não obstante constituir uma inequívoca concretização do princípio do legislador razoável, cometendo à Polícia Judiciária apenas as situações em que exista dolo, aquilo que à primeira vista poderia parecer simples torna-se, porém, complexo. Saliente-se, a título de curiosidade, que desde o início do corrente ano até ao momento em que este texto começou a ser redigido (finais do pretérito mês de Agosto), foram iniciados pela Polícia Judiciária setecentos e vinte seis inquérito relativos a incêndios florestais. Significa isto que, mais que uma mera interpretação literal do preceito legal, cabe à Polícia Judiciária, a maioria das vezes, a confirmação da existência de indícios de dolo ou de mera negligência – o que pressupõe toda uma aturada triagem das situações que lhe são comunicadas. Ressalvada esta dificuldade inicial, a própria investigação do crime de incêndio encerra em si algumas vicissitudes. Partindo do pressuposto que a investigação do crime de incêndio pretende, em última instância, lograr a identificação do autor do facto criminoso, é com o exame ao local ou locais onde o incêndio teve o seu início que começa a investigação, procurando-se logo aí encontrar e recolher os primeiros indícios da autoria dolosa do crime.

Ora, sabendo-se que cerca de oitenta por cento dos incêndios florestais tem origem em causas naturais ou em actos negligentes, é também esta fase essencial para a já referida despistagem inicial de situações duvidosas.

A inspecção judiciária engloba um conjunto de actos in loco caracterizados pela sua elevada complexidade técnica, os quais permitirão extrair conclusões relativamente à origem e ao modo como determinado incêndio se iniciou, sendo que a fundamentação científica das conclusões alcançadas poderá sempre ser confirmada por exames laboratoriais efectuados por peritos do Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária.

Nesta fase importa ressaltar sobretudo a dificuldade em determinar o meio de ignição, que poderá ser desde um mero isqueiro ou fósforo a outros materiais facilmente perecíveis – o que, ao invés do que sucede noutros campos de investigação criminal, constitui uma excepção ao princípio de Locard que enuncia a troca de elementos entre o autor e o local do crime.

Perante tais obstáculos, é fácil vislumbrar a necessidade de as conclusões obtidas a partir da inspecção judiciária serem corroboradas pelo testemunho de quem detectou e observou a progressão do incêndio, assumindo particular importância para a investigação criminal a colaboração da população local. Porém, não ficam por aqui as diligencias probatórias essenciais na investigação do crime de incêndio.

Também a recolha de informação junto dos órgãos de polícia mais próximos do sinistro, nomeadamente a Guarda Nacional Republicana e a Polícia Florestal, bem como de outras entidades, como as corporações de bombeiros e juntas de freguesia, se tem revelado de crucial importância para o desenvolver da investigação. E importa igualmente não descurar todo o esforço desenvolvido na recolha, tratamento e análise de informação desenvolvido pela Polícia Judiciária na área dos incêndios, com a constituição de núcleos orgânicos específicos.

Em resumo, é este conjunto de material probatório – exames, perícias, testemunhos – que, isolada ou conjuntamente, permitem num número significativo de investigações, não só concluir pela origem intencional de um incêndio, como identificar o seu autor, e seguidamente conhecer as motivações do seu comportamento criminoso. Questiúncula sistematicamente abordada, podemos afirmar que na origem do crime de incêndio estão, quase sempre, motivos fúteis, o que contraria a ideia, até recentemente aceite de forma mais ou menos generalizada, que a motivação do incendiário se encontraria, em regra, comprometida com interesses económicos.

Com efeito, quando falamos de autores de crime de incêndio florestal, estamos a referir-nos, numa parte significativa dos casos, a indivíduos inseridos em estruturas familiares frágeis, com parcos recursos financeiros, desempregados ou a exercer profissões mal remuneradas, com baixa escolaridade, hábitos com consumo excessivo de álcool e, em algumas situações, também com sinais de patologia psiquiátrica.

Geralmente são do sexo masculino, embora existam alguns casos de incêndios florestais dolosamente ateados por mulheres adultas. A indiferença pelas regras sociais está quase sempre presente, o que poderá ser causa e consequência da circunstância de viverem isolados das comunidades que os rodeiam. Não raras vezes, não conseguem apresentar uma explicação compreensível para a sua conduta, sendo certo que, quando confrontados com a factualidade que os incrimina, tendem a afastar de si qualquer responsabilidade pelas consequências do incêndio, procurando dissociar a sua conduta do resultado danoso por ela provocado.

O que a experiência tem igualmente demonstrado é que, num número significativo de casos, a conduta dos autores de incêndios florestais nasce de uma espécie de impulso, constituíndo as chamas um escape, uma libertação, algo que por vezes ganha contornos de compulsão. Com frequência os incêndios florestais são directamente vividos pelos investigadores da Polícia Judiciária, quando, com as chamas ainda altas, já se encontram no terreno a recolher os primeiros indícios da acção criminosa e da identidade do seu autor.

Calcorrear as cinzas, respirando o fumo, representa uma dura experiência, exigindo uma extrema racionalidade quando, no calor do fogo, se torna necessário contactar com as populações ainda em alvoroço e delas procurar obter informação útil, objectiva e fundamentada, que permita a reconstituição tão exacta quanto possível do acto criminoso. Porque essa reconstituição, dada a escassez de indícios com que habitualmente os investigadores se deparam, é tarefa complexa, a Polícia Judiciária tem feito um importante investimento na formação permanente dos seus funcionários de investigação criminal e de polícia técnica, o que tem constituído um factor decisivo na determinação da origem e autoria de muitos incêndios florestais. Porquanto todo este investimento pressupõe uma brevidade na resposta às solicitações, a Polícia Judiciária dispõe de um serviço de prevenção, isto é, um conjunto de meios humanos em regime de disponibilidade permanente para acorrer a situações que exigem um tratamento urgente e em que a rápida recolha e pesquisa de indícios é essencial para o desenvolvimento da investigação.

Numa perspectiva mais analítica, observem-se os dados vertidos nos quadros seguintes, deles se podendo retirar o aumento do número de inquéritos relativos a incêndios investigados a nível nacional pela PJ de 2002 a 2005 (sendo que, no que concerne ao presente ano, se encontram contabilizados apenas os inquéritos iniciados até 31/08/2005):

O quadro seguinte demonstra o grande aumento do número de suspeitos da autoria de crime de incêndio florestal detidos pela Polícia Judiciária:

Face a estes elementos estatísticos, é legítimo concluir que o aumento do número de inquéritos até 2004 foi acompanhado por um significativo número de detenções, com especial destaque para o número de detidos já alcançado em 2005, tendo os anos de 2003 e 2005 sido caracterizados por condições climatéricas marcadas por altas temperaturas, baixa humidade e fraca precipitação.

O esforço desenvolvido pela Polícia Judiciária no campo da investigação dos crimes de incêndio, com a adequação estrutural a uma realidade específica, no intuito de aumentar os níveis de eficácia e assim reforçar o vector essencial da confiança pública na Instituição, apostando na indispensável pró-actividade, é pois a estratégia que resulta da visualização que temos do fenómeno e da inerente triagem, formação especializada e acção em tempo útil que preconizamos, no exercício da repressão legítima e no auxílio da Administração da Justiça.


Ana Maia e Paulo Marques >Inspectores da Polícia Judiciária >Secção de Investigação dos Crimes contra o Património e Vida em Sociedade da Directoria de Coimbra

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